Conhecimento, Pessoas e Comunidades

Fundação Renova e os desafios da reparação do rio Doce

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Roberto Waack

Diretor-presidente da Fundação Renova

 

À medida que as iniciativas para recuperação dos impactos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, se desenvolvem, surgem desafios não imaginados no desenho inicial do chamado Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). Talvez o principal seja a constatação óbvia de que uma intervenção dessa magnitude (o desastre em si e as ações de reparação), num território tão vasto (cerca de 700 km ao longo da calha do rio Doce) não pode se dar sem a ampla participação da sociedade. No entanto, é imensa a complexidade da mobilização social e o funcionamento da governança.

Um desafio crítico é o entendimento, dimensionamento e delimitação da abrangência do desastre. Por ser dinâmico, com desdobramentos distintos ao longo do tempo, a fotografia do evento se transforma num dramático filme, com final indeterminado. A impossibilidade de visão convergente desse entendimento gera ambiguidades nas soluções propostas, incluindo o modelo de governança. Pelo dinamismo e ineditismo das soluções, é preciso haver disposição permanente para aprimoramentos, aceitação de erros e abertura para redesenhos. Infelizmente, o passivo gerado pelo desastre não proporciona essa disposição para ajustes permanentes. No lugar da postura construtiva, mais demandante, predominam críticas e embates. Natural e compreensível, mas certamente provocadora de percalços adicionais ao processo da reparação.

O esforço de entendimento do evento evidencia a necessidade de identificação e mobilização dos diversos segmentos da sociedade direta ou indiretamente implicados. Evidentemente, o grupo mais importante é o dos atingidos pela lama e pelas consequências sociais, ambientais e econômicas que ela gerou. São diversas comunidades extremamente heterogêneas. Na maioria dos casos, sem estruturas formais de organização, com pouca experiência na indicação de representantes para os longos e complicados debates voltados para o entendimento do desastre e desenho de modelos de governança. 

A principal crítica para o caso do rio Doce se concentra na pouca participação desse grupo de pessoas na concepção do TTAC. Essa fragilidade de nascença do processo da reparação resultou no aumento do passivo, com sérias consequências reputacionais aos envolvidos na solução desenhada, potencializando críticas e embates. Por outro lado, o chamado TAC Governança, assinado no final de 2018, é um exemplo de como o modelo pode evoluir, com a incorporação de um complexo sistema de participação das comunidades de atingidos nas instâncias de governança. 

A governança da reparação do rio Doce envolveu, nos últimos 3 anos, mais de 70 organizações reunidas no Comitê Interfederativo e suas 11 Câmaras Técnicas. Foram cerca de 400 reuniões para debates e direcionamentos sobre os diversos temas que compõem os 42 programas definidos no TTAC. Uma impressionante média de uma reunião a cada dois dias, envolvendo mais de 120 profissionais dos diversos órgãos signatários do acordo. Ao mesmo tempo, vultosos contratos com nove entidades, mobilizando mais de 300 consultores, asseguram ao Ministério Público e atingidos, informações técnicas sobre o processo de reparação em curso. A reconstrução do rio Doce é conduzida por uma cadeia de entidades públicas e privadas, das instâncias federal, estadual e municipal, incluindo as empresas mineradoras envolvidas no evento, um conjunto de cerca de 30 instituições de pesquisa e número ainda maior de organizações da sociedade civil. Esse processo pode (e deve) ser criticado pela sua potencial ineficiência, mas evidentemente é participativo. 

Dentro ou fora de uma estrutura de governança, os diversos segmentos da sociedade implicados no desastre continuarão a existir e vocalizar seus pleitos de distintas maneiras. As discussões sobre quem controla ou deveria controlar o processo da reparação são intermináveis. Empresas? Órgãos reguladores? Ministério Público? Comunidades atingidas? Requerem quase tanta atenção e energia quanto as infindáveis horas em reuniões de governança e demandas das consultorias e auditores. Consomem, certamente, mais de 50% do tempo dedicado às operações da reparação em si. Faz sentido? 

Este é o terceiro desafio tratado neste texto. O primeiro, o entendimento e dimensionamento do evento, o segundo, a participação dos diversos segmentos da sociedade implicados no desastre. O terceiro é o desafio de como conduzir um processo necessariamente inclusivo com eficiência e foco nos resultados da reparação — e não nos meios.

De uma forma caótica, outros desafios se misturam. O “desastre de Mariana” se insere num contexto histórico de degradação ambiental da bacia do rio Doce. Os últimos cem anos foram devastadores, com a conversão de ecossistemas de alto valor. Como comumente ocorre, impactos ambientais são quase que imediatamente transpostos aos sociais. A água do rio Doce há muito tem sido contaminada por volumes imensos de esgoto e efluentes industriais. Erosões e desassoreamentos ocorrem em todo o território. São dois desastres com uma perversa combinação. 

O histórico abandono e uma longa sequência de políticas públicas inadequadas geraram altíssima taxa de informalidade econômica e situações críticas de vulnerabilidade. O desafio de combinar a reparação do rio Doce com a fragilidade institucional implica numa necessária e complexa interação com poderes executivos e legislativos locais, com agendas diversas e expectativas de suprimento de funções que claramente não devem ser atribuídas à Fundação. Uma longa lista de passivos políticos e empresariais se mescla com a do desastre da ruptura da barragem de rejeitos, provocando um caldeirão com componentes ideológicos explosivos. Situação inevitável. 

No campo técnico, pouco se conhecia sobre soluções para o manejo de rejeitos e recuperação ambiental. O modelo de reassentamento escolhido também trouxe desafios para a definição das mais de 80 cláusulas resultantes de uma ação civil pública exclusiva. No entanto, talvez o maior desafio esteja no desenho de políticas voltadas para as indenizações, com a necessidade de contemplar os frágeis limites da informalidade e ilegalidade. São incontáveis situações, como a pesca sem autorização formal, atividades agrícolas em desacordo com o Código Florestal, retirada de areia acima do autorizado ou mesmo não permitidas por lei, formas tradicionais de garimpo se mesclando com situações ilegais. Nesse contexto, se insere uma longa e difusa cadeia de atividades indiretas como comércios, suprimento de bens e serviços para a pesca e agro. 

A longa lista de desafios apresentada, cobrindo desde o entendimento do impacto, o envolvimento de todos os segmentos da sociedade implicados, o funcionamento do complexo modelo de governança, a mistura de desastres históricos com o do rompimento da barragem de Fundão, as fragilidades institucionais e eficácia de políticas públicas, o volume de passivos empresariais e governamentais, a fronteira de conhecimento para as soluções técnicas, a informalidade e sua fronteira tênue com a ilegalidade de grande parte das atividades econômicas da região, parece recair integralmente sobre a Fundação Renova.

Há uma extensa lista de atividades realizadas, incluindo os mais de R$ 1,5 bilhão alocados em mais de 300 mil casos de indenizações, o esforço no reassentamento com a identificação de áreas, compra, elaboração de planos diretores, centenas de projetos individuais de casas, obras de infraestrutura, sistemas de monitoramento da qualidade da água e melhoria das estações de tratamento, dezenas de ações de restauração ambiental, mais de R$ 5,5 bilhões investidos, uma rede de profissionais do mais alto gabarito (são cerca de sete mil pessoas trabalhando) e extensa rede de organizações com inegável reputação técnico-científica. Mas apesar do muito realizado, muito mais há para ser feito. 

As críticas ao desempenho e especialmente à velocidade das ações de reparação são bem-vindas. A Fundação Renova acredita que só a partir de um amplo e diverso debate, conseguirá desenvolver as soluções mais adequadas. Trata-se de um modelo inédito de governança e de controle social. No entanto, entendemos que, assim como a ampla participação social é absolutamente necessária, a responsabilidade sobre o sucesso da reparação dos danos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão passa a ser igualmente compartilhada. A destruição e descredibilização do atual sistema de reparação, com foco no desempenho da Fundação Renova como depositária de todos os desafios indicados, é simples de ser feita. No entanto, dificilmente resultará em benefício para os atingidos.

A Fundação não se exime de sua responsabilidade na execução dos 42 programas indicados no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), mas o questionamento do modelo de ampla participação social, com sua inexorável complexidade, deve incluir todos os implicados no processo. Entendemos ser esse modelo de controle social um imenso avanço para situações com a complexidade que grandes desastres suscitam. A discussão sobre sua efetividade deveria ir além de críticas simplistas e superficiais. O aprendizado de como lidar com essas situações, tendo a mediação de conflitos em substituição a processos judiciais, deveria ser mais amplamente estudado, debatido e considerado como opção.

A reparação do desastre de Mariana deveria ir além dos bordões “nada foi feito e ninguém foi preso”. Qualquer imersão com qualidade na realidade trará visibilidade da complexidade, desafios, avanços, erros, acertos e perspectivas para maior foco e eficiência do processo.

 

*Uma versão desse artigo foi publicada no site da Folha de São Paulo em 27/06/19.

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