Conhecimento, Pessoas e Comunidades

A questão de gênero no caminho da reparação

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Christiana de Freitas
Especialista em direitos humanos da Fundação Renova

Apesar de inúmeras transformações sociais ocorridas ao longo do último século sob a perspectiva de gênero – maior participação das mulheres no mercado de trabalho, crescente escolarização, disseminação de métodos contraceptivos, maior acesso à informação, dentre outros -, a desigualdade de gênero no âmbito laboral e, em especial, no quesito de rendimentos, ainda é parte estruturante da realidade socioeconômica no Brasil, sendo reconhecidamente um problema grave, que precisa ser enfrentado.

Estatísticas de Gênero do IBGE trazem diversos indicadores que retratam a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho em nosso país. No que diz respeito ao número médio de horas semanais dedicadas aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, o estudo aponta que as mulheres dedicam 73% mais tempo a essas tarefas que os homens. O mesmo levantamento mostra um percentual maior de mulheres que trabalham em período parcial, o que contribui para que elas sigam recebendo cerca de ¾ da renda dos homens.

A desigualdade de gênero também está explícita quando se analisa os dados extraídos do cadastro realizado pela Fundação Renova, base para o reconhecimento das perdas sofridas por cada atingido pelo rompimento da barragem de Fundão, em 2015, ao longo dos 670 quilômetros da bacia do Rio Doce. Essa realidade fica mais evidente quando observamos que as informações coletadas pelo cadastro foram declaradas pelas próprias pessoas, sem qualquer interferência da Fundação.

Das 6.700 declarações de trabalho em funções do lar antes do rompimento, 6.500 são de mulheres. Entre as quase 11 mil declarações de exercício de atividade econômica externa ao ambiente doméstico antes do desastre, cerca de 7.000 são de homens. Além disso, é possível observar um destaque masculino na posição de responsável familiar, o que, inegavelmente, é uma herança da cultura do patriarcado. No cadastro, 66,03% das famílias autodeclararam os homens como os responsáveis pela família.

É evidente que essa desigualdade não agrada a Fundação Renova, que trabalha para reconhecer os direitos de cada um dos atingidos e atingidas, sem que haja qualquer tipo de discriminação, seja por gênero, seja por qualquer outra natureza. O tratamento igualitário e isonômico às pessoas e suas ocupações é um dos princípios norteadores das políticas de indenização, como a compensação por lucro cessante.

Dessa forma, os valores pagos a uma agricultora que tenha tido sua atividade econômica impactada são os mesmos destinados a um agricultor que tenha sofrido os mesmos danos em extensão e intensidade.

Além disso, ciente do seu compromisso voltado à reparação justa e integral, a Fundação Renova está empenhada em apoiar a promoção da autonomia e da geração de renda de grupos de mulheres nas áreas impactadas e encorajá-las a ocupar e exercer seu lugar de fala. É o que acontece, por exemplo, com o projeto Empoderar, que dá visibilidade para os trabalhos de artesãs, bordadeiras e quituteiras da comunidade de Barra Longa.

A implantação do TAC Governança, em agosto de 2018, que inclui os atingidos nos processos decisórios, possibilita a ampliação deste debate com a participação social das mulheres, via comissões locais e assessorias técnicas, que serão escolhidas pelas comunidades. A Fundação Renova considera essa uma oportunidade de garantir a representatividade feminina em espaços de decisão política.

A igualdade de gênero não é apenas um direito humano fundamental, mas também a base necessária para a construção de um mundo sustentável, digno e igualitário. Assim, políticas afirmativas de gênero, que enderecem questões das mulheres atingidas, podem e devem ser mais um legado da reparação dos impactos provocados pelo desastre de Mariana.

*uma versão editada desse artigo foi publicada originalmente pelo jornal O Tempo no dia 25 de abril de 2019

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